domingo, 5 de setembro de 2010

EU JÁ NÃO SINTO MAIS NADA...


Realmente eu não sabia como tinha ido parar deitada no meio da rua. Estava uma noite estrelada, um pouco quente.
Podia-se ver todas as constelações.
 A rua estava deserta, ninguém dava o ar de sua graça.
 Eu levantei-me do chão, abanei um pouco da poeira das roupas e comecei a olhar ao meu redor com muita atenção.
Era a rua do meu bairro, sem dúvida.
Mais silenciosa do que normalmente é, mas era o meu pedaço. Comecei a andar para ver se descobria o porquê, e, de soslaio, vi que havia várias pessoas agrupadas na igreja da cidade, precisamente perto do altar.
Entrei por pura curiosidade.
As pessoas olhavam para algo que eu não conseguia ver. Aproximei-me mais. Pude ver um caixão.
 Um velório estava acontecendo naquele momento.
 Olhei para os rostos das pessoas e notei que muitas ali eram conhecidas minhas. Vizinhas, amigos da minha família, colegas de escola, estavam todos lá.
Achei aquilo tudo muito estranho.
Aproximei-me ainda mais.
Do lado do caixão pude visualizar minha mãe sentada em uma cadeira, totalmente transtornada.
Ela chorava amargamente, levantava as mãos para o céu, perguntava a deus o propósito de todo aquele sofrimento.
 Vê-la naquele estado me deixou completamente sem reação, ou melhor, quase. A única coisa que fiz foi me aproximar do caixão para ver por quem minha mãe se debatia em dores.
 Levei um susto tremendo. Minhas pernas bambearam. Perdi o ar.
Eu conhecia a pessoa que estava deitada. Eu conhecia a morta. Era eu.


Fiquei inerte por alguns minutos.
Quando a razão começou a me fazer companhia novamente eu tive a impressão que ninguém estava conseguindo me enxergar.
 Era como se eu fosse invisível.
Fiquei na frente da minha mãe, mas ela simplesmente olhava para o caixão, e seus gemidos enchiam a igreja. Seus lamentos eram de cortar o coração.


Saí correndo da igreja. Não podia agüentar nem mais um minuto daquilo sem perder completamente o pouco de juízo que ainda me restava. Corri o mais rápido que pude.
 Como uma maratonista eu corria, mas não sentia cansaço.
 Nem ao menos suava. Claro que, dada às circunstâncias, aquilo passou despercebido por mim.
Nunca saberia precisar a distância percorrida, mas quando finalmente parei e olhei à minha frente, eu estava em frente aos portões do cemitério da cidade.
E mesmo sem entender a razão, eu pressentia que era exatamente o lugar onde eu deveria ir, e meu corpo, sabendo disso, levou-me até lá.
Os portões estavam abertos, algo totalmente anormal naquele horário. Decidi entrar. Alguma coisa me chamava, alguma coisa com uma força descomunal. E, devo confessar, aquela situação estava me causando um certo fascínio.
 Era como olhar pelo buraco da fechadura do quarto da irmã mais velha. Surpresas estariam garantidas.


Entrei. Olhei para o céu. Nada de estrelas.
O céu agora era um breu. Ficou frio de repente.
 Ouvi passos ao meu redor. Pessoas caminhavam para cá e para lá. Tinha algo de muito esquisito naquele caminhar.
 Eram como bêbados tentando andar em linha reta.
 Um deles olhou para mim. Seu rosto expressava total indiferença.
 Era como se nada lhe importasse, como se a resignação fosse a chave para seus problemas.
 Não gostei do que vi. Não fiquei com medo, mas aqueles olhos vazios fizeram com que eu me sentisse vazia.
 Caminhei em direção aos portões.
Iria embora imediatamente.
Foi quando ouvi alguém chamar meu nome.
Não foi um chamar educado.
Alguém bradava a plenos pulmões o meu nome.
Nesta hora senti medo. Nesta hora me dei conta da minha situação.
 O que estaria acontecendo? Seria aquilo tudo um sonho? - era o que eu pensava. Infelizmente aquela voz deixava bem claro que não.


O dono daquela voz foi se aproximando.
Calmamente. Eu me mantive no mesmo lugar. Pude vê-lo melhor à medida que chegava mais perto.
Ele usava um paletó cinza com uma rosa na lapela e trazia uma chave na mão. Era alto, e sua presença transmitia superioridade. Por incrível que pareça fui perdendo meu medo, e sentimentos confusos começaram a alojar-se no meu peito.


■Venha.


Eu o segui. Andamos alguns metros até chegarmos em uma cova aberta. Olhei para a inscrição na lápide e pude constatar o que já estava suspeitando: era o meu nome lá.


-Não entendo.

-Suicidas são sempre assim, se esquecem facilmente de seus atos impensados. Almeja tanto ir para o outro lado, e quando finalmente consegue, se apega à vida de uma forma que me deixa,
digamos, surpreso.

-Suicidas?

-Você não se lembra, não é? Fique despreocupada, isso é perfeitamente natural. Acontece freqüentemente.
Vou deixa-la à par de tudo.


E me contou tudo. Foi algo agonizante de ser relembrado.
As lembranças fluíram então. O choque do abuso, a vergonha, o sentimento de culpa. Meu tio fez o serviço completo.
Além de abusar de mim fez com que eu encarasse a vida de uma forma aterradora. Às vezes que tentei contar à minha mãe,
 mas a vergonha falava mais alto. Os cortes nos braços e pernas, como uma forma de me punir por algo que eu não tinha a mínima culpa. E o desfecho final. Overdose.
Realmente meu tio fez o trabalho completo.


-Está na hora de ir.

-Quem são estas pessoas? Por que vagueiam sem sentido?


-Pessoas como você que não agüentaram o amargor da vida. Mas elas podem esperar. Hoje eu quero você.


E saiu caminhando na minha frente. Eu o acompanhava logo atrás.

-O caminho é longo. Parímono é teu senhor agora. Almas vazias, acovardadas, deleite para minha eternidade. Mas agora já não sentes mais nada.

E ele tinha toda a razão. Para onde eu iria, o que aconteceria, não me preocupava. Indiferente eu estava. Resignada também.
Um longo caminho me espera, mas eu continuo a passos firmes, pois eu já não sinto mais nada.


POR SUELEN MARINHO

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